A sonoridade do Maracatu Leão Coroado nos leva a uma viagem que liga passado e presente, lançando-nos para um futuro. Isso nos faz perceber que nem todos os elementos do baque do Leão foram irrestritamente construídos pelos antepassados da agremiação. Os participantes contemporâneos agregam a sua visão de mundo e a vitalidade criativa de uma maneira que atualiza o baque. Mas a viagem ancestral à qual o Leão Coroado nos conduz através do seu baque está justamente na síntese simbiótica que o maracatu propõe: remeter a um passado para construir no presente e ir além.
O maracatu é festa, alegria, força e muito trabalho; é resistência, tolerância, solidariedade, produz sentidos para a existência dos seus envolvidos. No âmbito religioso, o maracatu rende homenagem ao egum (espírito) dos ancestrais da comunidade e de outras pessoas consideradas importantes para o maracatu. Por isso mesmo, no seu comando está Iansã, que, além de dirigir o vento, as tempestades e a sensualidade feminina, domina os raios e exerce a soberania sobre os espíritos dos mortos, os quais ela sabiamente encaminha para o outro mundo. No que concerne ao comando do Carnaval e da tradição do maracatu, a qualidade dessa orixá guerreira é denominada Iansã de Balé, como a ela se referia Luiz de França — o mestre antecessor — e como reafirma o atual mestre Afonso Aguiar Filho. Balé vem do termo iorubano igbalé (pequena mata, lugar sagrado) e, como assinala Afonso Aguiar, é o recinto do terreiro “[…] onde são oficializadas as cerimônias religiosas (sacrifícios, cânticos, louvores) para os ancestrais”. Eis porque as calungas — bonecas conduzidas pelas damas do paço (palácio) e que dramatizam os eguns — autoridades máximas do maracatu. “A gente só sai com o recado delas, que é a autorização”, resume o mestre Afonso.
A função do baque é sonorizar o que o maracatu ritualiza: a energia das senhoras e dos senhores da natureza (sobretudo de Iansã) e a energia vital dos integrantes que “botam o maracatu na rua”. O baque e o cortejo como um todo formam um cluster de signos que vicejam entre dois extremos: numa ponta, a imponência do trovão expressa no som dos tambores; na outra, as sutilezas da feminilidade e do amor expressas nos movimentos das damas do paço. O baque não poderia ser menos imponente.
Em vários maracatus nação, uma significativa parte dos saberes é ritualizada sob os auspícios de babalorixás, de ialorixás (pais e mães de santo) e/ou de iniciados que “zelam” pelas suas tradições culturais. O corajoso mestre Luiz de França foi um “zelador” que, com a sua habilidosa liderança, agregou reconhecimento ao Leão Coroado no âmbito da comunidade dos maracatus de Pernambuco e constituiu um sucessor, o mestre Afonso Aguiar Filho — segundo o pesquisador José Fernando Souza e Silva, o encontro deles foi mediado pelo prestigiado babalorixá Manoel Papai.
Mestre Afonso vem construindo uma nova trajetória de zelador, cuidando para que o Maracatu se mantenha firme, dando relevo aos seus traços definidores, mantendo e atualizando as convenções, agilizando oralmente a transmissão dos conhecimentos, enfim, empreendendo a continuidade vigorosa do Leão Coroado.